TEORIA

Você já observou uma mulher que escreve?

você já observou uma mulher que escreve

durante o ato da escrita?

já viu como emana dela luz e poder

que não são de outra estrela

senão dela mesma e do que conseguiu

angariar como alimento,

asteroides seiva outros corpos em expansão?

os pontos luminosos dos seus olhos

se abrindo e fechando em fractais

de energia puríssima?

você já se surpreendeu

com uma mulher que escreve

durante o ato mesmo da escrita?

[…]

(trecho do poema da escritora Micheliny Verunschk)

 

Como se guiasse o movimento do nosso olhar — ou como se fizéssemos as vezes de uma câmera manuseada de modo a focalizar ângulos distintos de uma mesma cena — a voz poética do poema sem título, cujo primeiro verso enuncia: “Você já observou uma mulher que escreve”, de Micheliny Verunschk, impele-nos a mirar uma mulher imersa no ato da escrita. Ou, ainda, interroga-nos a buscar, no baú da memória, alguma imagem que desenhe os traços e os meneios realizados por uma mulher envolta na experiência de escrever a si e ao mundo. Direcionando, à leitora e ao leitor, uma sequência de indagações que delineia a figura da mulher escritora como centro do nosso olhar, a voz poética envolve-nos numa espécie de jogo de perguntas — visto que o poema se materializa, quase por completo, moldado por interrogações — cujas respostas ficam a cargo de cada pessoa que o lê e, em alguma instância, entrecruzam-se nas camadas de sentidos que o compõe. Isto é, enquanto dura a leitura do poema, a nossa subjetividade e o nosso modo de enxergar o mundo, também, entram em cena, dialogando diretamente com a matéria poética. O poema, assim, torna-se uma provocação persistente, “uma pulga atrás da orelha”: será que nós já paramos para observar uma mulher que escreve?

 

Embora, inicialmente, visualizemos a cena de forma mais ampla, panorâmica, à medida que avançamos em sua leitura, a voz poética enseja movimentos de close-up, e, logo, somos chamadas a dedicar atenção aos detalhes: a luminosidade dos olhos da mulher, que se acendem enquanto ela escreve, e dão a ver outro mundo, suas reflexões ou até suas ideias mais íntimas; o percurso trilhado por suas mãos ao digitar as letras ou ao traçar, com a caneta, as palavras sobre o papel. As possibilidades de escrita dessa mulher são inúmeras: desde a escolha do gênero textual (ou da opção por amalgamar os gêneros), da forma de dizer que o texto irá tomar, do tema que será abordado (e cabem tantos…) até o viés escritural, seja acadêmico, seja literário, seja jornalístico (seja a mistura dos vieses), etc. Seja qual for o caminho escolhido em determinado momento, a nascente do ato da escrita se mantém: a criatividade, a inventividade, o movimento. No caso deste texto, tomo o referido poema como mote, para falar sobre algo que, há muito, tem despertado meu interesse, minha vontade de escrita: os laços possíveis entre o ato da escrita acadêmica, o erotismo e a nossa construção social enquanto mulheres no mundo. A mulher que estamos observando, então, está escrevendo um artigo, um ensaio, uma monografia, uma dissertação ou uma tese. Será que nós já paramos para observar o percurso de uma mulher tecendo sua escrita acadêmica, imbuída das experiências e dos desafios gerados pelo ambiente acadêmico em que está inserida? Será que o modo como a sociedade machista forma e educa as mulheres impacta no modo como produzimos academicamente? De que forma o erotismo se relaciona à vivência da escrita acadêmica?

 

Ainda que, na cultura ocidental, ao nos voltarmos para a prática da escrita, a perspectiva de que ela se associa ao mundo das ideias seja a mais iminente, quando concentramos nosso olhar na cena outrora delineada pelo poema, a primeira coisa que constatamos é a presença de um corpo. Sem corpo, não há escrita. É no movimento que a escrita acontece. Podemos não encontrar, de imediato, as palavras exatas para expressar as nossas elucubrações — ou o modo de dizer que nos pareça mais aprazível — mas é fato que só o encontramos na tentativa, no movimento; mesmo que o texto, ao final do processo, não nos agrade por completo. A escritora Julia Dantas, em um dos encontros da “Baubo” — espaço de mentoria e de realização de oficinas sobre escrita, conduzido por ela e por Cacá Joanello — falou, após eu relatar a minha insegurança em relação, à época, à escrita da monografia, mais ou menos assim (aqui a parafraseio): “acho que a gente adia a escrita, porque queremos que ela se dê de modo perfeito, de acordo com o que idealizamos; mas sentimos medo de não conseguir atingir esse ideal de perfeição”. Perguntei-me: qual texto eu esperava criar no final das contas? O que seria um texto perfeito a meu ver? O que me faria sentir satisfeita com aquilo que escrevesse?

 

Retorno à imagem do corpo. É entre o tilintar das teclas pressionadas pelos dedos em movimentos rápidos, o arrastar da caneta, sobre o papel, que não finda até deixar seus rastros, a ida até a cozinha para tomar um copo de água, uma pausa para visualizar o feed do Instagram ou responder alguém no Whatsapp, o espreguiçar do corpo já cansado, o escutar de uma música no Spotify que lhe impulsiona a dançar e aí, de repente, você lembra de uma construção sintática que se encaixaria bem no fluxo do texto, que a escrita se desnovela. O corpo é, também, suporte da escrita; espaço de elaboração. O corpo é, igualmente, central na vivência do erótico. A escritora Grada Kilomba, em seu livro “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano” (2008), dedica um capítulo para pensar a respeito da importância das mulheres negras se fazerem presentes nas tessituras de seus textos, como sujeitas que são, viventes de realidades históricas e de contextos sociais, formadas por suas histórias de vida, criadoras de formas, a partir de suas trajetórias, de narrar suas histórias e elaborar suas análises. Mesmo que as reflexões de Kilomba se direcionem mais diretamente à vivência das mulheres negras, marcada, além da questão de gênero, pelo racismo, podemos pensá-la, também, dentro da vivência das mulheres, no geral, enquanto escritoras e pesquisadoras. O fato da pessoa que escreve determinado texto se colocar como presença no próprio corpo do texto configura uma forma de dizer própria, redigida por mecanismos de escrita que se referem a um “eu” imbricado no texto; uma prática oposta à pretensa neutralidade universal responsável por propor um afastamento entre o corpo do ser humano e a pesquisa de sua autoria. No entanto, há como suprimir o corpo do fazer acadêmico? De todo modo, não é uma pessoa, feita de histórias e de “carne e osso”, que está por trás da investigação efetivada? É nesse sentido que Kilomba enfatiza: “[…] demando uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma história e uma realidade específicas — não há discursos neutros” (2008, p. 58). bell hooks, em seu livro “Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade” (2017), cita um trecho da introdução escrita por Jane Gallop, para o livro “Thinking through the Body”, na qual Gallop discorre sobre a obra de Adrienne Rich e relaciona-a aos pensamentos de homens que refletiram acerca do corpo. Disponho um trecho dessa citação abaixo, justamente, porque ela, também, reivindica a permanência do corpo em detrimento do distanciamento e da neutralidade tidas como características dessa escrita acadêmica universal:

As mulheres têm, antes de mais nada, de provar que são pensadoras, o que é mais fácil quando acatam o protocolo que prega a separação entre o pensamento sério e um sujeito encarnado na história. Rich pede às mulheres que entrem nas esferas do pensamento e do conhecimento críticos sem se tornar espíritos desencarnados, seres humanos universais (apud, p. 255).

Tendo as palavras de Gallop em vista, caso as mulheres sigam a fórmula preestabelecida, serão aceitas com maior facilidade nesse lugar de pensadoras (ainda que essa “facilidade” seja entremeada por problemáticas e desafios), pois estarão repetindo o modelo que os homens definiram (uma vez que, anteriormente na história, somente os homens podiam estudar). No entanto, é preciso atender ao chamado de Rich: afirmar-se enquanto “sujeita encarnada na história” e criar modos de dizer as inquietações que movimentam suas pesquisas a partir da sua própria existência.

 

No que tange ao erotismo, seu elo com a sexualidade, comumente, é a primeira lembrança que surge na imaginação das pessoas quando a palavra “erotismo” é vocalizada. Entretanto, o erótico é uma fruta com várias camadas: desde o seu entrelaçamento ao ato sexual, do seu vínculo com a criação poética, apontado por Paz em “A dupla chama: amor e erotismo” (1994) e por Bataille no livro “O erotismo” (2013), até a sua interligação com o processo criativo. Audre Lorde, no “Irmã outsider: ensaios e conferências” (2019), situa o erotismo como um instrumento de poder deturpado pela nossa sociedade machista em benefício de um olhar que violenta, objetifica e paralisa os corpos das mulheres. Se não há movimento, se estamos alocadas na condição de objetos (e não de sujeitas), não há impulso, ação.

“Quando falo do erótico, então, falo dele como uma afirmação da força vital das mulheres; daquela energia criativa fortalecida, cujo conhecimento e cuja aplicação agora reivindicamos em nossa linguagem, nossa história, nossa dança, nossos amores, nosso trabalho, nossas vidas” (Lorde, 2019, p. 69).

O erotismo, dessa forma, é parte inerente dos processos criativos nos quais a escrita acadêmica está implicada. Todo trabalho de pesquisa toma corpo na criatividade de quem o edifica; no modo de ler o mundo e de estabelecer relações específico de cada pessoa (ainda que haja as peculiaridades de pesquisa referentes a cada área do conhecimento). Cada pesquisadora cultiva particularidades no que concerne à rotina de escrita, à escolha do tema que motivará sua trajetória de investigação — geralmente, resultado de um interesse pessoal, subjetivo — à elaboração de suas ideias, ao modo como realiza cada etapa metodológica da pesquisa, à maneira como escreve suas análises. Contudo, todas essas singularidades nada mais são do que frutos do erótico; dessa “energia criativa fortalecida”. Se bem alimentada, essa força, traduzida em processos criativos díspares, é capaz de movimentar tanto o corpo e o espírito de quem se propõe a criar quanto o corpo e o espírito da sociedade, que poderá acessar cada discussão e cada resultado da pesquisa, de acordo com seus próprios interesses.

 

Por consistir em um âmbito da vida em sociedade, o espaço acadêmico também reproduz os modelos sociais que regem nossa interação no mundo. Sendo assim, o machismo e as violências de gênero marcam tanto o modo como as mulheres se sentem na academia — às vezes, inseguras de suas vozes e pesquisas, com baixa autoestima — quanto o modo como são tratadas — por vezes, tendo suas falas descredibilizadas ou sendo levadas, a todo tempo, a provarem-se dignas de estar ocupando os corredores da universidade. Embora, claro, questões de insegurança e de baixa autoestima possam alcançar os homens também, há uma questão de gênero estrutural, da nossa sociedade, que interfere nesse cenário e faz com que as mulheres sejam mais propensas a experienciar emoções que a paralisam. Não é à toa que, conforme apontou o psicólogo, docente e escritor Robson Cruz, no texto “Gênero e bloqueio da escrita acadêmica”, publicado em seu Instagram, as mulheres, devido a questões sociais, tendem a sofrer mais para escrever seus textos (apesar de haver um histórico que aponte a boa fluência de suas escritas na trajetória escolar). A partir das suas experiências em atendimentos clínicos, Cruz aborda, no post, microfenômenos que se fazem pistas de que esse bloqueio de escrita, vivido pelas mulheres, intensifica-se em decorrência de ações experienciadas nas próprias relações que elas mantêm ou vivenciam com seus companheiros ou com homens do mundo acadêmico. O erotismo, nesse sentido — firmando aqui uma ponte com esse fenômeno do bloqueio da escrita acadêmica — é potência de vida que, se for empregada como estratégia de entendimento, por exemplo, do que acarreta esse bloqueio de escrita que, por vezes, atinge as pesquisadoras e, também, na forma de exercícios práticos de escrita no percurso da pesquisa, pode auxiliar na driblagem desse bloqueio e/ou na vivência de um itinerário de escrita mais leve e mais saboroso. Lorde posiciona o erotismo como poder. Se os homens utilizam essa ferramenta a seu favor, corrompendo-a, para que tenhamos dela somente uma imagem, uma história única, que prioriza a sexualidade masculina, as mulheres precisam construir e experimentar exercícios práticos de escrita, pautados na vivência do erótico, que as proporcione conhecer outras camadas e ângulos de seus significados e, aos poucos, construir outros modos de relação com a esfera e com a escrita acadêmicas. Gloria Anzaldúa, em seu texto: “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo” (2000), empreende questionamentos e reflexões que se coadunam ao que tenho pensado neste texto:

Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato — esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? Como foi que me atrevi a tornar-me escritora enquanto me agachava nas plantações de tomate, curvando-me sob o sol escaldante, entorpecida numa letargia animal pelo calor, mãos inchadas e calejadas, inadequadas para segurar a pena? (p. 230).

A carta de Anzaldúa, talvez, seja um bom ponto de partida (e de chegada) para nós, mulheres, em relação ao ato da escrita, pois, ao mesmo tempo que nos sentimos entendidas ao lermos suas palavras (ainda que a realidade de cada mulher seja particular), somos instadas a escrever, apesar de todas as violências e dos mecanismos empregados para nos silenciar. É preciso, então, entender as engrenagens que nos paralisam, para tecer mecanismos que impulsionem o nosso movimento. Hélène Cixous, em seu livro “O riso da Medusa”, estabelece a prática da escrita como parte da experiência da mulher consigo mesma, com suas próprias forças, com o mundo, com seu corpo e com sua sexualidade. Escrevendo, a mulher descobre a si e ao mundo, enquanto constrói suas percepções por via da palavra.

Escrever, ato que não somente “tornará real” a relação des-censurada da mulher com sua sexualidade, com o seu ser-mulher, permitindo-lhe o acesso às suas próprias forças; que lhe devolverá seus bens, seus prazeres, seu órgãos, seus imensos territórios corporais mantidos lacrados; que a arrancará de sua estrutura superegoica, na qual reservaram-lhe sempre o mesmo lugar, o de culpada […] — através desse trabalho de pesquisa, de análise, de iluminação, por meio dessa emancipação do maravilhoso texto dela mesma, texto que é preciso, com urgência, que ela aprenda a falar (Cixous, 2022, p. 52).

Com Cixous, reitero a importância do movimento; do escrever, apesar de; visto que o caminho para erguer experiências mais leves de escrita acadêmica se tece na própria manutenção da prática de escrita, embora esta não precise se dar sempre de modo solitário. Cabe, aqui, frisar a relevância de erigirmos espaços em que mulheres possam ser interlocutoras das pesquisas umas das outras e, até mesmo, sugerir exercícios práticos de escrita que colaborem com o destravamento do processo de escrita da outra. Larisse Nolasco — escritora e pesquisadora a quem chamo, também, de amiga — falava-me, dia desses, sobre como escrever um pouquinho todo dia é práxis eficiente à construção da pesquisa acadêmica. Voltando o olhar, por um instante, para este próprio texto, por exemplo, penso que, embora ele não traga, necessariamente, algo novo ou uma descoberta inusitada; ele se faz enquanto uma tentativa minha de elaboração, de começar a transpor, para a escrita, algumas das inquietações presentes na minha vivência enquanto pesquisadora e enquanto escritora. Para todo percurso, há um começo. Ontem, à noite, refletindo um pouco sobre publicar ou não este texto, pensei em como gostava de ler textos, de outras pessoas, que reúnem análises assim; em como eles, além de me incitarem modos novos de olhar algo no mundo, faziam-se pontes para outros textos e motivavam-me a agir. Optei, então, por não engavetar mais outro texto. E a voz poética do poema de Verunschk ainda ressoa: “você já observou uma mulher que escreve?/ algo nela se torna iridescente”.

 

Referências bibliográficas:

 

ANZALDÚA,Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos feministas. Édna de Marco (Trad.) 1. ed. 229-236. Janeiro, 2000.

 

CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. Natália Guerellus, Raísa França Bastos (Trad.) 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.

 

CRUZ, Robson. Gênero e bloqueio da escrita acadêmica. Instagram @robsoncruz78. 2024. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/DDz3rYoyVuR/>. Acesso em: 26 de dezembro de 22024.

 

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

 

LORDE, Audre. Irmã Outsider: Ensaios e Conferências. Stephanie Borges (Trad.). 1. ed. 1 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Jess Oliveira (Trad.). 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

 

 VERUNSCHK, Micheliny. A poesia espetacular de Micheliny Verunschk. SerMulherArte: revista feminina de arte contemporânea. 2020. Disponível em: <https://www.sermulherarte.com/2020/03/a-poesia-espetacular-de-michelini.html>. Acesso em: 26 de dezembro de 2024.

Picture of Jaiane Beatriz Cavalcante dos Santos

Jaiane Beatriz Cavalcante dos Santos

Jaiane Beatriz Cavalcante dos Santos é licenciada em Letras - Língua Portuguesa (UFAL), mestranda em Estudos Literários (UFPE) e cursa uma especialização em Literaturas de Língua Portuguesa (UNIFESP). Atua como professora de Língua Portuguesa na Escola de Educação Básica Padre José Theisen e como mediadora do clube de leitura “Páginas Encantadas” na Escola de Educação Básica José Barros Paes. É mediadora cultural, escritora e poeta; seu primeiro livro publicado se chama "Algodão doce" (2022, Editora Ipêamarelo). Integra o laboratório de escrita criativa ‘Fumagêra Lab”.