Em minha trajetória de leitor conheci muitas pessoas que desde cedo estabeleceram certas leituras como essenciais em suas vidas (a relevância da construção do paideuma). Joyce. Homero. Virgílio. Kafka. Machado. Eça. Pessoa. Guimarães. Proust e tantos outros. Muitos dos autores citados anteriormente só consegui encarar de forma mais sistemática depois de algumas tentativas, como Joyce e Proust, sendo que o francês tive que ler duas vezes o primeiro volume da À la recherche du temps perdu, No caminho de Swann. A primeira leitura foi a tradução do Mário Quintana, a segunda do Fernando Py.
Na primeira tentativa de encarar toda a Recherche eu ainda não tinha estabelecido ler todo o Proust como um projeto de leitura completo, sistemático e eficiente. Isso veio muitos anos depois quando finalmente adquiri a obra completa traduzida pelo Fernando Py, e então decidi ler todo o Marcel; senão os sete volumes na sequência, mas um próximo do outro. E foi o que fiz.
No caminho de Swann foi releitura (e extremamente reveladora) e À sombra das moças em flor logo em seguida. Interessante ver a mudança na tradução de À sombra das raparigas em flor (muito aportuguesado) para a versão de Py. Diria que dos sete volumes, esse talvez tenha sido o mais arrastado e mais demorado para concluir. Embora muito do que Marcel venha a desenvolver a partir de O caminho de Guermantes (um dos melhores de toda série) já se vislumbre nesse livro.
O caminho de Guermantes merece atenção especial por vários fatores, e um dos principais é que nos deparamos com um narrador já se encaminhando para tornar-se o escritor que pretende no início. Também é no terceiro livro que as diferenças e distanciamentos entre aristocracia e burguesia ficam mais evidentes, e muito do que é comentado pelos salões da alta sociedade sobre o Caso Dreyfus.
Proust é uma espécie de testemunha ocular de acontecimentos dos mais relevantes do final do século XIX e início do XX, como as questões que antecedem a Primeira Guerra e a Revolução Russa. A partir de Sodoma e Gomorra (meu preferido de todos da Recherche) nos deparamos com os estigmas sociais, tanto de burgueses quanto de aristocratas, sobre a homossexualidade e de como essa questão era vista como uma questão de “inversão” psíquica e social.
Sodoma e Gomorra pode-se dizer que é o grande momento de um dos personagens proustianos mais icônicos de todos os tempos, o Barão de Charlus. Personagem controversa que simboliza toda uma classe igualmente controversa dentro de uma sociedade em plena ebulição e efervescência. Curiosamente é ao Barão de Charlus a quem o Narrador se afeiçoa em vários momentos de toda série.
Até aqui, já tendo lido os quatro primeiros livros da série (o que levou um ano e meio), minha visão sobre o narrador e sobre outras personagens icônicas, como o próprio Charlus, mas também Albertine, Gilberte, Elstir, Odette, Swann, Saint-Loup, sua mãe e sua avó, começa a mudar, como acontece na construção de grandes personagens; mas também há de se levar em consideração dois lugares geográficos que atuam nas narrativas de forma tão relevante como se fosse personagens, Combray e Balbec. O primeiro simbolizando a infância de Marcel, o segundo a perda de certa inocência e o início de uma vida repleta de frustrações.
Li os três últimos livros um seguido do outro: A prisioneira, A fugitiva e O tempo recuperado. Nessa reta final, principalmente em A prisioneira e em A fugitiva, temos um enfoque principal na figura de Albertine e o que ela representou para Marcel (vale ressaltar que o Narrador é nomeado apenas duas vezes em toda a série, e ambas em A prisioneira), e o que sua ausência causa em sua vida. Todas as descobertas que Marcel faz e como tudo isso prepara para seu fim em O tempo recuperado que, naturalmente, não é o fim, mas o começo de toda a série que nós, leitores, lemos.
É desnecessário dizer o quão relevante e genial é a Recherche, mas sem dúvida nenhum leitor passa ileso à experiência da leitura completa. Diria que assim como nos tornamos leitores diferentes depois de ler Homero, Virgílio, Dante, Kafka, Machado, Guimarães, Stendhal, é assim também ao lermos Proust.
Minha trajetória com Marcel Proust levou dois anos e meio e 2.462 páginas. Não há como permanecer o mesmo depois de finalizar a Recherche de forma atenta e sistemática. Nem como leitor, tampouco como escritor.