CONTO

O silêncio do vizinho

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado

(Vinicius de Moraes)

 

Justo hoje, o dia em que mais precisava me concentrar é que resolvem fazer barulho! É um poropompom horroroso vindo do andar de cima, tinha que ser esse tal de Arnaldinho, quem é que decide aprender a tocar trombone em pleno 2022? Não conheço uma única pessoa que se levante de manhã e pense: “sempre quis tocar trombone, que instrumento lindo de se ouvir”. Por que não aprende a tocar um violão, igual a mim? Muito mais legal e ainda incomoda menos a vizinhança. Mas esse tal de Arnaldo, que por coincidência do destino tinha que ser meu vizinho, resolveu que queria tocar essa coisa. Já reclamei algumas vezes, mandei mensagem no grupo do condomínio, mas porque hoje é sábado, fim de semana, ele toma a liberdade de ensaiar em alto e bom som. E o pior é que nem é só ele, no apartamento ao lado a várzea está liberada também, deve ser aniversário de algum desses pestinhas dos vizinhos. E eu, que só tenho o fim de semana para preencher os relatórios da faculdade, que me vire para me concentrar.

Quem foi que me mandou nascer pobre também? A culpa deve ser minha. Sim, é minha mesmo, quem mandou ter que trabalhar pra conseguir me sustentar nessa cidade? Ter que conciliar trabalho e estudo pra tentar subir na vida? Não ter dinheiro pra morar em uma casa com uma vizinhança melhor? Tô quase tendo que acender vela pra poupar na luz, e esse pessoal aí esbanjando felicidade e me atrapalhando a alcançar a minha. Mas não posso reclamar, porque aí, eu é que sou chato e birrento. “Esses menino entra na faculdade a já começa achar que tá com o rei na barriga”, “só olha pro próprio umbigo agora”, é isso que meu pai me disse. Só porque passei o fim de semana lá com eles e pedi um pouco de silêncio pra conseguir terminar um trabalho. Agora já estou há meses sem visitá-los, se não me ajudam em nada, então que não me atrapalhem.

Não aguento mais esse poropompom! Parece que quanto mais ele treina pior fica! Não tem jeito, vou ter que ir lá. Meu relatório tem que estar pronto até amanhã, depois tenho que revisar e mandar pro professor. Sem falar que ainda tenho que ajudar no seminário, o pessoal do grupo já deve estar bolado, ainda não fiz quase que nada pra ajudar. Esse Arnaldinho não tem mais nada pra fazer num sábado à noite, não? Ir pra alguma festa, sair com a namorada, família, sei lá? Ficar em casa tocando um fucking trombone? Todo sábado? Vai curtir a vida ou então faz que nem eu e procura um futuro melhor, não tá fazendo nem um e nem outro, aí é jogar o tempo no lixo. Trombone não dá futuro nenhum, nem pra impressionar as meninas isso serve. 

Esse prédio tá todo largado também, essa escada parece que não vê uma vassoura há anos. Mas vamos lá, agora esse cara vai ouvir umas boas. Nossa, faz tempo que não subo aqui, esse era o apartamento do Léo, coitada da família dele… foi triste. Acho que ninguém mais quis alugar o apê dele depois daquilo, agora a porta e as janelas do apartamento só ficam fechadas. Não que antes fosse muito diferente. Não conversava muito com ele, ninguém conversava. Até parecia ser gente boa, o problema é que vivia isolado do mundo. Não fazia nenhum barulho, nem parecia que tinha morador até aquele dia de merda, ficou um clima pesado no prédio, até hoje. E ele morava de frente pro Arnaldinho, bem perto de mim também, e hoje todo mundo finge que nada aconteceu. Todo mundo tocando a própria vida, sem nem ligar pra quem está ao redor.

Estranho, se não fosse o barulho, mal saberia da existência do Arnaldinho. Parando pra pensar, é bem esquisito todo fim de semana ele estar aí tocando, sozinho. Será que ele não tem amigos… nem família? É, ele parece ser bem solitário também, nunca o vi receber visitas nem nada. Melhor pensar bem no que vou dizer, talvez tocar seja algum tipo de terapia pra ele, sei lá, e eu aqui todo birrento. 

— Opa! E aí? Estava te ouvindo tocar lá de baixo… aí pensei, tenho um violão guardado lá… tá meio empoeirado, mas se você animar, a gente podia treinar umas músicas juntos… Tô precisando desestressar um pouco, hoje é sábado, né, até Deus descansou!

Picture of João Pedro da Silva

João Pedro da Silva

João Pedro da Silva Gomes é natural de Viçosa, interior de Minas Gerais, e cursa Letras na Universidade Federal de Viçosa. É escritor, tendo publicado contos em revistas e blogs na Internet.