Pra mais de mil olhos

Por Anderson Bernardes

 

Deixou a bicicleta jogada no quintal, empecilho bem na frente da porta, e atravessou a cozinha sem abrir a boca. A morrinha de óleo e graxa se espalhou pela casa inteira. Nem sequer pôs os olhos nas crianças. Sumiu no banheiro. Não me admirei, também não reparei nele. Só na carteira de cigarros enfiada no bolso do guarda-pó sempre imundo.

Meu menor já choramingava com fome. O mais velho tinha o material de escola espalhado pela mesa, varou a manhã sem dar conta das tarefas. Que jeito, os olhos nos cadernos, mas a cabeça nos desenhos da televisão! No fogão a panela de pressão uivava, os ovos estralavam na frigideira e a água esbranquiçada do arroz borbulhava. Entre os reclames e a parada de sucessos, o locutor da rádio dava as horas e lembrava o tardar do almoço.

Mal saiu do banheiro, e já senti o cheiro do tal produto que ele teima em usar pra lavar as mãos. Uma porcaria que só funciona na propaganda. Não tira graxa, custa uma fortuna e ainda tem cheiro de merda de rato. Aquela mão fedida destampou a panela pra averiguar o cardápio. Sempre arroz. Beliscou um dos ovos fritos e, antes de enfiar o dedo engordurado na boca, me perguntou se não teríamos almoço. Nossa, que engraçado…

Claro que não respondi. Pouco demorou e a baderna do noticiário de esportes na televisão abafou a minha música. Desliguei o rádio e fui atrás dele. Nem se deu ao trabalho de tirar a roupa imunda, se esparramou na sala do jeito que chegou. O maço de cigarros no bolso. Pedi pra pelo menos tirar o guarda-pó. Ou ia emporcalhar meu sofá inteiro. Na cozinha, um ovo estourou na frigideira. Gordura em tudo. E os meninos atrasados pra aula.

— Tira esses cadernos de cima da mesa e arruma tua pasta, meu filho! Agora chega de tarefa! — gritei com o mais velho. — Arruma os pratos, coloca teu irmão no lugar dele, pelo amor de deus!

O feijão cozinhou. Soltei a pressão da panela e o som do vapor se juntou ao lero-lero dos comentaristas do futebol. Os meninos reclamavam comida, batiam talheres. Não bastasse o inferno, o próprio diabo pousou na pia. Na lata de tinta improvisada como lixeira ao lado do fogão, eu joguei as cascas dos ovos que atraíam o bicho nojento. A mosca rodopiou. Sumiu.

Almoço na mesa, gritei pra sala. Como sempre, o outro resmungou que já vinha. Isso põe meus nervos em trapos e ele sabe. O pequeno se distraiu com qualquer coisa no teto carunchado da cozinha. A mosca pousou no prato dele. Da tampa do fogão eu catei o pano de prato e ataquei. Uma colher foi pro chão. De novo a mosca rodopiou. E sumiu.

As crianças terminaram o almoço. Ele nada. Da sala vinham somente as vozes dos quatro ou cinco idiotas na televisão, as mesmas palavras todos os dias. Eu precisava arrumar os meninos, vestir o uniforme no pequeno. E o triste não tirava o rabo do sofá. Chamei de novo e de novo. Quando ameacei guardar as panelas, apareceu na porta. Sem camisa, suado. Pelo menos os cigarros tinham ficado pra trás. No sofá, decerto.

Sentou-se calado, o garfo e a faca apoiados na mesa, apontados pro teto. Tenho que preparar o prato dele todos os dias — herança de sogra. A mosca voltou, do nada. Zuniu sobre a louça suja e pousou na beira da mesa. Ataquei com o pano de pratos. Ela rodopiou mais uma vez e sumiu. Ele riu. Besta.

Puxei o pequeno pra sala. No braço do sofá, o guarda-pó embolado com a camiseta ainda escondia os cigarros no bolso. Catei o maço e me tranquei no quarto dos meninos. No guarda-roupas encontrei a bermuda e a camiseta de escola, peguei cinco cigarros do maço e enfiei no sutiã, entre os seios. Nem comecei a vestir a roupa na criança e ouvi som de televisão e a barulheira de talheres arrastando no prato. Era o infeliz no sofá. Já cansei de pedir pra não comer na sala. Mas não tem jeito. Nada tem jeito. Meti o maço de cigarros na cintura e saí com o filho pelo braço, lancheira pendurada, o irmão lá fora com a mochila nas costas, pronto pra uma pernada de quase meia hora até a escola.

No portão de casa, ajeitei mais uma vez os cabelos dos dois, dei beijo em cada um e os deixei seguir pela estrada em que nunca andei. O maior já tem o passo do pai. Não tenha o mesmo destino, deus o livre. Sara, a vizinha na janela, espiava meus pequenos cada vez menores rua acima. Depois me olhou. Ajeitei melhor os cigarros no sutiã, o maço na cintura. Nem dei o primeiro passo de volta, meu nome chegou num grito.

Guarda-pó na mão e a raiva na cara, aos berros no meio da cozinha, queria saber dos cigarros. Dei de ombros, passei por ele e fui pra sala jogar o maço em cima do sofá de qualquer jeito. Mas ele me seguiu. Continuei até o quarto das crianças, abri o guarda-roupas e fingi arrumar o que já tava arrumado. Senti a mão fedorenta me apertar o braço, depois o corpo sacudir. O toque dele nunca fez quentura em mim, sempre me fez gelar. Mas até o frio queima. É quando do medo se faz loucura.

— O teu filho — gritou em mim — tá me roubando os cigarros!

Ri na cara dele. Senti a mão e o cheiro de merda de rato ainda mais fortes.

— Me respeita! Não sou frouxo que nem o marido dessa tua amiguinha aqui do lado, não!

Eu não tinha mais pra onde voltar. Ri com dor e com raiva.

— É ela que anda colocando coisas na tua cabeça, é?

Gargalhei, os olhos deles saltaram. As palavras e a unha suja de graxa no indicador chegaram ao meu nariz antes do bafo de oficina.

— Eu te mato!

Fiz força. Ele me largou. Corri pra sala, enfiei a mão entre o assento e o braço do sofá e de lá fingi tirar o maço de cigarros. Joguei a embalagem amaçada nas fuças dele e saí pra cozinha. Mal comecei a lavar minha louça e senti aquela mão nojenta em mim outra vez. Dizia que faltava a metade dos cigarros. Ou eu dava um corretivo no meu filho, ou o moleque viraria um delinquente. Falava como se não fosse o pai. Antes não fosse mesmo. 

Terminada a cantilena, largou os cigarros sobre a mesa. No banheiro, emporcalhou o vaso inteiro e não lavou as mãos. Normal. Ainda não tinha erguido o zíper da calça quando viu a mosca pousar na embalagem amarrotada. Pegou o pano de prato com a mão imunda. Dali o pano foi direto pro tanque. Nojo! Rodeou a mesa e atacou. Os cigarros voaram longe. A mosca rodopiou e sumiu pela janela.

— Uma praga dessas tem pra mais de mil olhos. — eu disse, rindo. — Enxerga melhor que bicho homem!

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