PROSA

Moneda (ou Exéquias para os desaparecidos)

Queria tê-lo conhecido antes do fatídico setembro de 1973, com suas pessoas, paredes e papéis intactos, sem bombardeios e sem trincas, com as portas e salas abertas e plenas de claridade e funcionamento. Mas somente muitos anos depois pude entrar na majestosa arquitetura de Toesca. Quando me bateu a primeira vontade de ir vê-lo, todas as portas da cidade e do país estavam fechadas. Meu amigo, Túlio, não respondia mais as minhas cartas. Nunca mais o vi nem tive notícias. Pensei em ir a Santiago atrás dele, rever o amigo e aproveitar para satisfazer minha curiosidade, minha imensa vontade de penetrar o Moneda, mas me desaconselharam. Eu sofria — e ainda sofro — com uma crônica alergia afetada pela mínima mudança na atmosfera, e diziam que havia por lá muita poeira e um fedor insuportável no ar. Não foi tanto pela alergia, mas achei por bem adiar minha viagem e aguardar por tempos mais azuis, límpidos, transparentes e aromas mais agradáveis.

 

Naná me escreveu um tempo depois, falando do horror e do silêncio que agia como uma espessa e impenetrável membrana, como as grossas paredes de pedras do palácio. Ela dizia que o silêncio doía tanto quanto a ausência das pessoas. Arrumaram uma forma — que, segundo ela, é própria desses regimes — de encobrir tudo e apagar pistas. Cada palavra que lia em sua carta parecia uma lâmina a me retalhar o corpo. Era algo tão inacreditável que mais parecia uma história inventada, uma ficção distópica ou um desvario. Tanto que cheguei a duvidar. Eu não acreditava que pudesse haver tanta estupidez, tanta maldade. Nunca fui mesmo de esmiuçar essas coisas de política, nunca me envolvi, e se eu não dava conta do que se passava tão perto de mim, imaginem em outro país! Foi ela quem me alertou e me arrastou para o meio da agitação, ainda nos anos de 1980. Tivemos uma conversa não muito tranquila, pois ela só faltou me chamar de bundão alienado, não entendia a minha cegueira. Eu tinha outras coisas na cabeça, acho que era meio desatento e até egoísta, um insensível que não estava nem aí para o que rolava pelo resto do mundo. Quando dei por mim, pensando no desaparecimento de tanta gente, na aflição e no sofrimento das famílias buscando desesperadamente informação e ajuda, sem sucesso, reconheci, enfim, minha torpeza e quis reparar ou ao menos abrandar minha completa ignorância e falta de compaixão. Foi então que aumentou a vontade de andar atrás de vestígios, de cheiros, de pegadas que pudessem trazer de volta, ainda que apenas na lembrança, a imagem do meu grande amigo sumido certamente no mar como o Stuart. 

 

Enfrentei todo tipo de dificuldade, pois o assunto ainda era velado por mãos frias e pesadas. Mesmo assim, continuei minha busca. No princípio, era uma busca por documentos, jornais, cartas, contatos com sobreviventes, tudo sem sair do país. Conheci muita gente cujos amigos e familiares desapareceram aqui do mesmo jeito, assim, sem mais nem menos. Os métodos de lá eram os mesmos dos tempos duros que vivemos por aqui e que eu, do mesmo modo, não me interessara em saber. Passei inacreditavelmente imune a tudo isso. É preciso dizer a meu favor, como ressalva, talvez, que os jornais não falavam do assunto. E as escolas, menos ainda. Nos meios em que havia um pouco mais de informação, eu não entrava. Eu era mesmo um bundão alienado que só pensava em arquitetura, em mim e em meu trabalho, e olhava com receio certos grupos e reuniões camufladas e sigilosas. A bem da verdade, eu morria de medo, e abominava a clandestinidade. Me ancorava num falso legalismo e numa ideia superficial do mundo, das pessoas, das coisas e de sonhos importados lá de cima, do norte.

 

Enfim, depois de tanto esperar, chegou a hora de ir a Santiago. Mas não foi assim tão fácil, num estalar de dedos. Levou um tempão porque por aqui o ar andou pesado e carecendo de borrifadas cavalares de transparências e suavidades. Tudo foi muito difícil, e a grana, então, era mirrada. Só em 2005 pude, enfim, realizar meu sonho. Nesse tempo eu já sabia do trágico fim do Túlio e de outros tantos, e meu interesse em visitar o palácio já não era tão acadêmico ou profissional. Quando lá cheguei, bem em frente comecei a tremer, invadido pela emoção e pela tristeza. Entrei no palácio puxado pela voz de um guia. Ele falava de arquitetura e história e, em tom de quem abre aspas, disse que o país havia perdido sua independência, era um jeito soturno de construir uma metáfora, e logo entendi que Naná estava certa, o passado recente havia sido muito dolorido e deixara marcas por lá, assim como em todos os lugares por onde o sinistro pássaro andino sobrevoou.

 

Mas, aos poucos, Moneda voltava a ser o que era. Confesso que relaxei e me diverti andando por todos os lados, dentro e fora de suas paredes, em todas as ruas, ora num dia claro de sol, ora sob um céu acinzentado e triste como naqueles tempos obtusos. O meu amigo não constava em documento nenhum. Era como se eu estivesse louco, procurando por algo que nunca existiu. No fundo eu sabia que não encontraria vestígios materiais, Naná me avisara. A minha memória, porém, ficou impregnada de sua causa, de sua firmeza e obstinação, como se fosse uma overdose de vacina contra os facínoras. Falei dele exaustivamente, com todas as pessoas que encontrava, não me importando se agradaria ou não, porque uma força vinda de dentro me levava a falar dos episódios dantescos. E ainda insatisfeito, parei num longo corredor e gritei o nome do Túlio e aguardei o eco ribombar nas paredes. Todos os olhares se voltaram para mim e por um instante tive medo. Os olhares pareciam flechas, dardos lançados em minha direção. Mas tão logo o eco cessou, todos gritaram vários nomes, um de cada vez e, depois, todos juntos gritavam nomes, como se clamassem pelos seus entes, ou como orações, como exéquias para os desaparecidos. Então, me recompus e, aliviado, gritei mais vezes até me dar por satisfeito e sair exausto como quem sai de uma batalha.

 

No hotel, conferi os registros que fiz dos encontros, entrevistas, visitas e passeios de toda a semana. Revi as fotografias. Escreveria para Naná tão logo retornasse ao Brasil. Fechei as malas e aguardei a hora de voltar. Trouxe de lá suvenires, lágrimas e ecos. E uma inquebrantável aversão aos sórdidos ditadores.

Picture of José Vecchi de Carvalho

José Vecchi de Carvalho

Escritor e compositor, tem contos publicados em blogs, jornais, zines literários e coletâneas. Finalista no Prêmio off flip 2022, é membro da Academia de Letras de Viçosa. É autor dos livros “Duas cruzes” (Kazuá, 2018), “Contradança” (Estronho, 2020), “Cada gota de silêncio” (Ipêamarelo, 2021), Redemunho (Ipêamarelo, 2023) e “O grito amarelo (Ipêamarelo, 2024).