Com a publicação do primeiro volume da Trilogia do Exílio, em 1922, mais tarde publicada sob o título de Os condenados, Oswald de Andrade inaugura um projeto de escrita que dará ao cânone literário nacional, não sem grande comoção e animosidade, um novo modo de conceber o romance brasileiro: a aplicação e combinação, em larga escala, de recursos cinematográficos à tessitura romanesca. À época, a presença desses procedimentos foi notada e assinalada por alguns críticos que interpretaram a rebeldia do jovem escritor como a promessa de inovação na forma de fazer romance. Para Couto de Barros, “o livro inaugura em nosso meio técnica absolutamente nova, imprevista, cinematográfica”. Em referência à sequência de cenas que rodaram a infância do pequeno Luquinhas, filho de Alma, Monteiro Lobato assentiu “série de quadros à Griffith”.
A associação da obra oswaldiana à linguagem cinematográfica elabora, já há muitos anos, um profícuo debate no meio crítico literário brasileiro. No âmbito de tais discussões, seu trabalho em prosa é tido como espaço privilegiado (embora não exclusivo) da exploração da gramática fílmica, no qual o poeta e romancista paulista empreende largamente lances formais e estilísticos mais explicitamente voltados a essa direção. Constituem esse arsenal técnico: a incorporação de uma simultaneidade e descontinuidade cênicas à composição narrativa. As condensadas estruturas discursivas entremeadas de rupturas, as superposições imagéticas e o olho-lente que se move dentro da narrativa ora acelerando ora retardando a apresentação dos fatos fazem irromper textos que se comportam, estrutural e discursivamente, à maneira de filmes. Como dirá Haroldo de Campos em introdução feita ao Os Condenados, em 1964, é através da montagem de fragmentos que a prosa experimental de Oswald da década de 20 se relacionará estreitamente à “sintaxe analógica do cinema, pelo menos de um cinema entendido à maneira eisensteiniana”.
Para Eisenstein (2002), a montagem seria uma ideia que surge “da colisão de planos independentes” e, por vezes, “de planos opostos”. Não seria articulação semelhante a que move os quadros em Alma (1978)? Ao longo de todo o romance, encontramos a superposição de imagens ora concordantes ora conflitivas, entretanto, nunca discursivamente subordinadas umas às outras. As imagens, nesse volume, descolam-se autonomamente — embora sua reunião e colisão, estruturalmente falando, sejam essenciais para o desenho do romance. Como os planos cinematográficos de Serguei Eisenstein em O Encouraçado Potemkin (1926) ou em A Greve (1925), as cenas aqui se chocam e se harmonizam para se desdobrarem em outros planos, ou, aliás, em outras ideias. As imagens oswaldianas são, pois, férteis, copulam e parem outras imagens num ritmo ininterrupto — tal definição não contemplaria, também, a própria noção de criação poética: o eixo das similaridades projetado sobre o eixo das contiguidades?
Em artigo publicado em 1942, o sociólogo Roger Bastide, num apanhado a respeito dos principais pontos que lhe ocorreram sobre o romance, discorrerá longamente sobre a questão da utilização dos processos cinematográficos no primeiro volume da Trilogia do Exílio. Entre os pontos destacados, estão a utilização intercalada de câmera lenta e acelerada, o veio sintético da obra oswaldiana, que a faz caminhar tão confortavelmente pelos métodos do cinema, e a integração da ação à cena do romance. Ao invés de explorar seus personagens justificando-lhes as ações a partir de análises psicológicas (problema para o qual, à época, o cinema não tinha solução), Oswald dá-lhes ao gesto, fazendo-lhes encenar suas complexidades e subjetividades a partir da ação: “[…] a luz da paisagem, o décor exterior, uma dobra de roupa, uma fumaça de cigarro, passos na noite […]”, segundo Bastide, são elementos que contam os personagens, invocando seus sentimentos, não os descrevendo.
Nesse sentido, Alma penetra o cenário literário dos anos 20 como romance às avessas — revolucionário para uns, ultrajante para outros. Contendo pouco mais de cem páginas, o texto apresenta estrutura sintética, organizado em parágrafos curtos e sem segmentação capitular. O espaçamento que separa, ao longo do volume, os pequenos blocos de texto, no entanto, funciona como um corte, ou como enunciara Bastide , como um “découpage” responsável por mixar e orquestrar o momento, a duração e a relação entre cada uma das cenas filmadas. Para constatar tal procedimento, basta observar como o primeiro parágrafo do romance, dedicado à introdução do velho Lucas e o cãozinho no retorno de um passeio vespertino, foi cuidadosamente isolado do parágrafo seguinte em que Alma, regressada à casa, mira-se diante do espelho. Aqui, de uma cena para outra, há uma suave transição de tom, pouco perceptível, é verdade, mas está lá. A ideia de retorno, que envolve o quadro do avô e o cãozinho, é continuada pela aura de retorno que também contempla o quadro de Alma em posse de casa. Embora esse tom, rastreável em ambas, crie, à primeira vista, uma transição harmoniosa, a aragem serena (quase casta) que pousa na cena 1 conflita diretamente com a atmosfera do impudor de uma Alma examinando, no espelho, a frescura dos roxos deixados em seus seios, na cena 2. Eis aqui os mesmos princípios da montagem eisensteiniana.
“O velho e o cãozinho foram andando na sombra enjoada da tarde. Tinham passeado muito. Dobraram a esquina da Rua dos Clérigos. Os vizinhos saudavam-nos. Eram ambos antigos no bairro e na cidade.
Alma havia regressado naquele instante. Retirou a blusa, mostrando ao espelho do seu quarto guindado os alvos seios manchados de apertos. Pensava: por que será que quando uma porta me machuca, me faz sofrer; quando bato a cabeça numa janela, choro de dor; e êle pode me cortar a navalha, não dói: é delicioso!”
(Alma, Oswald de Andrade)
O ponto de contato entre as estratégias composicionais de Oswald em Alma e as reflexões sobre montagem cinematográfica de Eisenstein é, justamente, a centralidade das imagens no pensamento e obra de ambos. Num outro nível, o que os une é, também, o interesse pela linguagem enquanto possibilidade de criação, seja através da superposição de imagens (a montagem), seja mediante as relações que pode proporcionar e intermediar. Nessa direção, consideramos a montagem, na obra oswaldiana, como a colisão de planos-imagens independentes que geram outras ideias-imagens, mas também como corpo linguageiro que se articula e rearticula internamente — como é, aliás, toda poesia. Mesmo em prosa, afirmará Bastide, a arte oswaldiana incorpora a condensação poética.
BIBLIOGRAFIA
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